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Antonina, Litoral do Paraná, Palestine
Petroleiro aposentado e petista no exílio, usuário dos óculos de pangloss, da gloriosa pomada belladona, da emulsão scott e das pílulas do doutor ross, considero o suflê de chuchu apenas vã tentativa de assar o ar e, erguido em retumbante sucesso físico, descobri que uma batata distraída não passa de um tubérculo desatento. Entre sinos bimbalhantes, pássaros pipilantes, vereadores esotéricos, profetas do passado e áulicos feitos na china, persigo o consenso alegórico e meus dias escorrem em relativo sossego. Comendo minhas goiabinhas regulamentares, busco a tranqüilidade siamesa e quero ser presidente por um dia para assim entender as aflições das camadas menos favorecidas pelas propinas democráticas.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Eles, os LGBTT-fóbicos, passarão; nós, passarinhos!

Copiei de Dirce Pereira da Silva

Olá a todas e a todos. Inicialmente gostaria de salientar que já sou mãe, digamos assim, por "três vezes": tenho uma filha com 60 anos de idade, meus netos (ele 33, ela 26) e um bisneto de 4 anos. Dá para perceber que não sou jovem: já são 80 anos de caminhada. Uma caminhada muito árdua, diga-se de passagem. Não sou homoafetiva mas, sempre que conheço alguém que fuja à condição sexual dominante, lembro-me um pouco de minha mãe. 
É uma pena que mamãe já tenha falecido em 1997: mesmo analfabeta ela adoraria ouvir a leitura de diversas postagens aqui. Ao contrário de mim, mamãe não era propriamente alguém simpatizante da causa gay ou de qualquer outra. Hoje percebo que minha mãe, sem saber, pregava a compaixão no sentido do budismo. Na nossa cultura compaixão significa ter dó, piedade, enfim, ver o outro como um coitado. No budismo não: ter compaixão é conhecer a dor do outro e dar a ele o seu ombro, para ajudá-lo a caminhar. E essa foi minha mãe a vida toda.
Eu tive experiências horrendas com o preconceito racial. Sou de um tempo muito anterior à lei do racismo e aturei desde violência verbal (como me chamarem de macaca) até agressão física (expulsar-me de um baile porque eu era negra e me jogar na sarjeta, ou cuspirem na minha cara).
O maior amigo que tive em minha vida era gay. Faleceu há alguns anos, vitimado por enfarte. Embora eu desconfiasse bastante, ainda na distante década de 1950 ele me contou sobre sua condição sexual. Aos poucos fomos percebendo as semelhanças existentes nas formas em que éramos excluídos da sociedade: eu fui recusada pelos pais de meu noivo em casamento (por ser negra e ele branco) e, por isso, adotei minha filha. Eu e meu ex-noivo tivemos idas e vindas, mas ao acertarmos nossa vida o câncer o matou.
Com meu amigo foi pior. Morávamos em uma cidade pequena do interior de São Paulo e ele me dizia que, por vezes, conhecia alguns homens no banheiro da rodoviária. Depois havia um lugar em que os gays da cidade se encontravam - até mesmo quis ir um dia, mas ele me disse que isso traria medo a todos. Vivíamos sob a ditadura militar.
Uma palavra que ele me dizia e marcou minha vida foi "migalhas". Ele dizia ter migalhas de amor, apenas isto. Conhecia alguém numa noite, tinha ou não relações sexuais e, no dia seguinte, ninguém se olhava no rosto. Havia homens e mulheres casados que, na verdade, eram gays. O único local seguro para falar sobre isto era minha casa, pois na dele os pais sequer tocavam em assuntos dessa natureza.
Minha mãe, depois de certo tempo, passou a se "intrometer" nas questões. Mamãe era uma mulher inteligente, apesar de pouco instruída: ela queria aprender. Cheguei a ficar surpresa quando ela, católica fervorosa que era, disse que ele ainda encontraria "um rapaz" a quem amar. Não, isso não foi no século XXI: foi na virada da década de 1960 para 1970. 
Lembro-me de quando nós dois fomos passar férias em São Paulo, capital, e nos dirigimos a uma boate gay. Na época passava a novela "Dancin' Days" e tanto as casas quanto o público buscavam imitar personagens da novela. Lá ele conheceu seu primeiro namorado, e eu mesma sugeri que ele se mudasse para São Paulo: lá haveria mais liberdade que no interior. Ficávamos na casa do meu ex-noivo que, por ser um homem muito culto e à frente de seu tempo, também apoiava meu amigo nessa questão. No entanto, a mãe do meu amigo ficou viúva e alegava estar doente todo o tempo. As idas a São Paulo tornaram-se cada vez mais raras.
Meu ex-noivo finalmente pôde se divorciar graças à aprovação da lei (antes era apenas "desquitado": não podia casar novamente) e seguiu ainda os protocolos da década de 1950: foi falar com meu pai, que o tratou muito mal. Só que dessa vez enfrentamos tudo - sobretudo a mãe dele, que era racista - porque já tínhamos mais de 50 anos de idade. Meu pai achava "absurdo" se casar nessa idade, mas desde quando há tempo para o amor? Só que ele morreu... e eu o amei até sua morte. Na verdade, ainda o amo, mesmo passados 62 anos do início de nosso noivado. 
Eu e meu amigo às vezes nos questionávamos: o que seria pior? Um amor correspondido e proibido de se viver (como o meu) ou nunca ter um amor, como era o caso dele? O preconceito existe, a homofobia atinge níveis que assustam e eu não sou tola ao ponto de desconsiderar nada disso. Só que há 40 anos sequer ouvíamos falar em namoros gays, embora alguns existissem. O mundo já conseguiu ser pior do que é hoje. 
Mais que por mim ou por meu falecido amigo adotei desde minha aposentadoria, dada aos 70 anos de idade, que minha bandeira seria a criminalização da homofobia (embora o termo nem existisse). O preconceito contra nós, afrodescendentes, continua a existir... mas graças à Lei ninguém fala! Bem ou mal, conseguimos formar já umas duas gerações sem ouvir os constantes insultos que eram dirigidos às pessoas negras.
Penso que criminalizar a homofobia tornará a sociedade melhor. Continuará a existir preconceito, mas ao menos ninguém poderá falar! As novas gerações talvez consigam ser mais generosas do que a minha foi. Considerando que estou provavelmente na geração mais velha ainda viva (nasci em 1934), eu me envergonho pelo que nós legamos e continuamos a legar ao mundo. Só que mesmo gerações mais novas, como a da minha filha, ou a dos meus netos, continuam com práticas sectárias dignas de minha juventude.
É hora de mudar. Sou mãe, avó e bisavó em luta pela igualdade. Nossa bandeira não tem limitações nem idade para ser hasteada. E se eu puder contribuir em algo com esta luta, acredito que uma parte muito considerável de minha vida não terá sido em vão. 
Acredito que aqui há muitas mães pela igualdade. Sintam-se meus filhos, caso queiram, embora eu me ache mais avó que mãe em meio a tantos rostos jovens. Que nossa luta e nossa voz sejam uma só coisa e reverbere no coração das pessoas.

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